sábado, 7 de agosto de 2010

Alguma beleza



Manifestei bondade fora das entrelinhas ao vê-lo, no desejo de que assim ficássemos com certa soberania sob os despojos e nos perdoássemos como se acreditássemos ainda em perdão como chave de algum segredo.

Submetemo-nos a confissões inventadas então, pois o momento era de luxo.
Deitamos nas almofadas, lado a lado, mãos no quase se tocar, deixando
espaço para alguma dormência de insignificância.

Não falamos nada que pudesse ser compreendido por decodificadores, nossa natureza numa caixa de bombons aberta nos mastigando no aroma de chocolate.

Em certo momento viramos as cabeças nos olhando e apertamos o nariz um do outro rindo feito crianças escorregando num chão de peixes, lambuzados de maresia sem cansaço de areia.

Manifestou bondade buscando minha orelha como se fosse anzol, ficando ali pendurado e debatendo-se .

"teria virado um vermelho?" perguntou ao que pensei. "pescamos uma rede!" respondi ao que pensou.

Nadadeiras estendidas até o abajour, resíduo de antigos vendedores de ferro-velho anunciando no portão de casa que ainda é tão cedo que dá tempo de sermos capturados.

E fomos.
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quinta-feira, 8 de abril de 2010






quem ama de caquinhos

faz emenda

quem ama

de caquinhos faz mosaicos.






foto: Geison de A. Borges

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

foto:Geison de A.Borges


Claro que é perto da meia-noite que todos passeiam, mas era eu que estava lá, pela última vez.

E numa extremidade do quarto que ninguém via, abri a janela. Não via a grade.

É que lua assim tão declarada cobre o parapeito de evasão.

Água pingada e retorcida, sem copo, não coincidia com boca alguma além da minha.

O cinzeiro ainda estava lá, cobertor que me tomava toda de pó: sem sonho no travesseiro.

Há anos tento resolver o impasse do olho no chão do teto antes do desabamento.

Uma corda pendurava o banquete: "Longe de mim o sol!"

Puxei e inundação.
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domingo, 17 de janeiro de 2010

Petisco


Antes que me apresente, deixe-me assim.

Convalesci no entretanto com alguma pena de hora-extra, confundindo a mentira da saudade.

Péssimos antecedentes indicam o presente promissor das unhas roídas na cara talhada de santo, um primor.

Penso como um trator ecológico saltando as minhocas dentro das formigas.

O dia do índio no calendário me irrita, rasgo aquela merda comendo tapioca ou não?

Meu maior desejo é descobrir como não engolir meu próprio cuspe depois de ejetar saliva.

O menor é não lamentar porra nenhuma.

- Prejuízo é um tesouro, meus bens mais preciosos!

- Então pegue mais e lembre-se: "Um dia tudo isso será teu."

Mas..do que eu estava mesmo a falar? Lembrei! Meu nome é Onofre, tenho 54 anos e trabalho com recursos humanos há vinte e seis.

Meus amigos me chamam de Cofrinho, nunca entendi bem porquê.
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Frente fria





Li seus adendos numa dessas propagandas enganosas de lunetas vídeo-clipe.

Aninha: "Dei só um olhar e ele pensou que fosse eu".
Cristina: "Eles são tão estranhos, mamãe. Posso voltar pro papai?"

Bastiana: "Só porque eu gritei Lombardiiiiiiii na hora h, ele não me perdôou. Resolvi ligar na Globo."

Joana: "Quanto mais eu falava mais ele esquecia e acabei comprando um MP3."

Doralice: "Sei lá, o cara me deu uma soqueira no dia dos namorados e eu usei, pensei que era pra isso."

Cora: "Ultimamente desisti das passeatas gays e ando fazendo campanha só por eunucos inofensivos."

º
Encontraram-se numa comunidade de relacionamentos. Embora ainda não soubessem (nesse momento do texto estão todas trabalhando) tinham em comum a vocação: digitadoras.

Em Cristina começara a despertar na infância. No dia em que seu pai a levara pela primeira vez à praia e cobrira seu corpo todo de areia, deixando-lhe complacentemente a cabeça do lado de fora.

Bastiana era a mais velha do grupo, chegara até a fazer um curso de datilografia em 1983, fato que omitia cuidadosamente do chefe na repartição.

O caso de Doralice era o mais estranho. Desde que amputara o dedo médio fechando o porta-malas com sua mãe dentro, ficou obcecada por telemarketing. Após o bip na sua secretária ouvia-se sempre uma histérica gargalhada.

Meteram Cora num vestido-bombom rosa aos quinze anos e desde então ela passou a ver o mundo como um enorme bolo confeitado. Aos vinte anos, com a grana que herdara da madrinha contadora, abriu seu próprio negócio de lingerie.

Aninha era míope e tinha vergonha de usar óculos, o que sempre lhe abastecia de muitos tropeços em calçadas. Diziam seus colegas que ela tinha um anjo da guarda poderoso, ela acreditava e seguia completamente embevecida quando lhe confundiam com um sushi no ônibus lotado.

Joana fora criada num orfanato católico e sua melhor recordação eram os dias santos catalogados e o coro dos monges beneditinos ecoando aos domingos na sacristia.

No feriado do dia de finados receberam um convite por email do Cláudio para se cadastrarem no site, assim o fizeram e foi assim que as vi, de passagem.

Já pedi que me adicionem antes que bloqueiem minha senha da internet por atraso no pagamento da funerária.

Matarei a todas com pôr-do-sol na Tailândia.
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